CUIDADO PARA NÃO VESTIR AS MÁSCARAS DA FALSIDADE FARISAICA
Desde pequeno, quando ia à
igreja por influência da minha vózinha, eu sempre percebi algo diferente entre
os que se chamavam “evangélicos”. Algo nunca me soou bem aos ouvidos. Sempre
fui uma criança questionadora desde muito cedo. Na Escola Dominical eu
transbordava perguntas das mais diversas ordens às professoras. Perguntas que
muitas vezes ficaram sem respostas. Na medida com que fui crescendo, estes
questionamentos foram aumentando.
Já na adolescência quando
um pastor me viu jogar “uma pelada” na rua com os amigos, veio chamar minha
atenção, pois, segundo ele eu estava “pecando”. Sem titubear indaguei: “Pastor,
me mostra na Bíblia onde está escrito que jogar bola é pecado?” Isso me custou
algum tempo sem tocar na orquestra da igreja, embora não tenha obtido resposta
à minha pergunta.
Já na juventude, eu não
estava mais suportando o sistema religioso engessado da qual a igreja que
pertencia estava se tornando. Os questionamentos aumentaram, e eu estava me
sentindo como um peixe fora d’água. Ouvia acerca da “doutrina”, o qual eles
confundiam com os costumes da denominação, e isso me enfurecia. Vi muitas
pessoas serem expostas, humilhadas, saírem da “igreja”, terem suas vidas
destruídas por causa da religiosidade de seus líderes. Observei tudo isso, e
algo dentro de mim dizia que o Evangelho era diferente daquilo que eu estava
vendo.
Por um período pequeno,
acabei por me afastar daquilo que se denominava “igreja”. Fui curtir a vida,
desfrutar da juventude, conhecer os amores de adolescentes, bem como suas
rápidas decepções. Experimentando de tudo um pouco, e sendo experimentado pela
vida em suas ambigüidades.
Até que resolvi novamente
retornar. Porém, embora pensasse que tinha encontrado um lugar bacana para
congregar, com o passar do tempo, vi que a religiosidade e o farisaísmo não
respeitam placas de “igrejas”, eles invadem todos os sistemas religiosos. Veio
novamente a frustração. Tentei me encontrar novamente em outro lugar, agora já
com uma família formada. Me envolvi com o ministério, liderei o diaconato,
assumi a superintendência da Escola Dominical, dava aulas para os jovens,
homens, mulheres, crianças e adolescentes. Acabei assumindo também o
departamento de missões e evangelismo. Fui tesoureiro da igreja. Pregava em
muitas igrejas, festividades e congressos. Trabalhei auxiliando o pastor. Mas,
passado um tempo, fui percebendo que estava me permitindo ser moldado por um
sistema da qual eu nunca havia concordado. Este sistema estava penetrando em
minha vida, me forçando a mudar meus conceitos de liberdade do Evangelho. E me
vi novamente nos embates contra a religiosidade e o farisaísmo agora disfarçado
com outras faces. Não suportei, e novamente me afastei, preservando minha
consciência acerca do que cria ser o Evangelho.
Hoje, um bom tempo depois
de tudo isso, me vejo com a minha consciência pacificada e em constante
crescimento daquilo que é realmente o Evangelho da Graça de Jesus Cristo.
Por que relatei brevemente
minha história? Para mostrar que a religiosidade e o farisaísmo não existiram
somente nos tempos de Jesus. Eles perduraram durante o transcorrer dos séculos
até chegarem aos nossos dias.
Hoje, quase trinta anos
depois, eu ainda me deparo com religiosos que querem determinar – diante seus
conceitos pessoais – critérios para a vida alheia. Constantemente eu encontro
um aqui e outro ali, que discordam da pregação da Graça, Perdão e Misericórdia
de Deus. Eles se julgam justos e sem pecados. Confundem o pecador que peca com
o pecado do pecador. Pensam que por terem uma conscienciazinha acerca das
Escrituras, podem afirmar que não pecam. E por conseqüência definem, pautado em
“suas experiências religiosas”, quem vive na prática do pecado ou não. São
atitudes semelhantes aos dos fariseus da época de Jesus.
E Jesus sempre advertiu
seus discípulos para que tenham cuidado com os fariseus e seu fermento capaz de
levedar toda a boa massa. Jesus sempre fez um paralelo com os pecadores e os
fariseus. Ele chega a dizer que as meretrizes – pecadoras aos olhos cheios de
juízos dos fariseus – iriam preceder eles no Reino de Deus.
Jesus advertiu os seus
discípulos de que a condenação do fariseu não tinha paralelo entre os demais
pecadores daqueles dias. As prostitutas, os publicanos, os pervertidos e os
demais párias daquela sociedade – com os quais Jesus estava em permanente
contato – jamais receberam tão intensas ameaças de severo juízo quanto os
fariseus. Com essa afirmação eu não estou dizendo que eles não eram também
passíveis de juízo, pelos seus próprios pecados. O que estou dizendo é que para
Jesus, os pecados deles eram pecados mais “verdadeiros”. Nem por isso eles
deixaram de estar sob o crivo do juízo de Deus; porém, com muito menor rigor,
nos graus da condenação, do que o que estava prometido para o falso religioso.
Jesus disse que “por fora”
os fariseus eram perfeitos; todavia, o interior era um lixo. O Senhor disse que
era como alguém que só lava o prato de comida por fora e que é capaz de comer
no mesmo prato sujo, a vida toda (você pode se imaginar comendo no mesmo prato
sujo a vida inteira? Você pode se imaginar bebendo água num copo sujo por toda
a sua vida?). E ainda: que eles eram como sepulcros pintados de branco –
mostrando beleza enquanto a podridão acontecia do “lado de dentro”. Isso
significa que é bastante possível que as pessoas se escondam sob as vestes
religiosas para mascararem seus reais valores interiores.
Muita gente, e mesmo
jovens, se esconde sob o disfarce religioso a fim de pecar com mais
“segurança”.
Psicologicamente falando,
esse fenômeno de se esconder embaixo das vestes religiosas para pecar com mais
profundidade não é totalmente estranho. Aliás, o melhor lugar para esconder
nossa própria maldade é a igreja. Nós que somos membros da igreja devemos
sempre ter a coragem de perguntar o que significa nossa presença no ajuntamento
do povo de Deus. Isso porque na igreja há sempre dois tipos de pessoas: aquelas
que escondem sua própria maldade e dureza interior sob o disfarce da fé e da
moralidade, e aquelas que se conhecem como pecadoras e que escondem a si mesmas
sob o sangue de Jesus. O primeiro grupo esconde a sua maldade. O segundo grupo
esconde a si mesmo enquanto confessa a sua própria culpa.
A questão é: como pode
isso se desenvolver? Eu ouso afirmar que o problema está nos nossos padrões de
espiritualidade, os quais muitas vezes são falsos. Por isso, quando alguém está
tentado a pecar, está também, automaticamente, tentado a esconder sua tentação
sob o disfarce do radicalismo comportamental. Dessa forma, quase sempre os
cristãos, antes de caírem numa tentação, caem em uma outra: a tentação de
aparentarem uma vida que está para além da possibilidade do pecado. Obviamente
ninguém fica mais vulnerável ao pecado do que aquele que não admite sua própria
vulnerabilidade.
Acontece que isso é um
círculo vicioso. Primeiro, a pessoa é tentada. Depois ela sente a obrigação de
mascarar essa realidade. Ora, quando isso acontece essa pessoa está se
condicionando psicologicamente para se tornar um hipócrita.
E que é o hipócrita, senão
aquele que não assume o que é e aquilo contra o que luta? E quem consegue viver
a vida inteira escondendo de si mesmo e dos irmãos as suas fraquezas sem que,
de um modo ou de outro, acabe caindo diante daquilo que ele nega como sendo sua
própria sedução? Daí, a inferência de que quanto mais “espiritual” for o
ajuntamento cristão, mais propício ao pecado ele será. Justamente aqui nós
estamos diante de um grande paradoxo cristão: bem-aventurados sejam os fracos,
os mansos e aqueles que são capazes de chorar. Somente depois é que se fala dos
limpos de coração. Só é limpo de coração quem limpa o coração diante de Deus e
dos irmãos, mediante frequentes confissões de carência humana. Não existe tal
pessoa limpa de coração que seja solitária e incapaz de constantes revisões de
vida. Não existe ninguém permanentemente limpo de coração. Existem apenas
aqueles que se deixam limpar mediante a confissão e a sinceridade de uma vida
que não tem medo de ser suficientemente humana para confessar tendências em vez
de assumir um outro lado de sua humanidade: o pervertido lado de sua
humanidade-inumana, que prefere esconder tendências e viver pecados.
Quando esse tipo de
comportamento se desenvolve, o que acontece é que a tendência da pessoa é
assumir cada vez mais a “santidade” publicamente, a fim de compensar suas
incoerências vividas nos bastidores. Daí que pessoalmente eu me impressiono
muito mal com pessoas cuja ênfase na santidade me soe um tanto extravagante.
Para mim, na maioria das vezes esse comportamento esconde um conflito interior
justamente naquela área que se tornou um obsessivo discurso. Pessoas
equilibradas tendem a falar de tudo, ao invés de se tornarem obcecadas por um
discurso só. E mesmo quando alguém tem uma ênfase pessoal e particular na vida,
se essa pessoa é saudável tal ênfase será vivida sem nenhum espírito de
cobrança para com aqueles que não conseguem viver a vida com o mesmo peso,
naquela área. Ora, tudo isso me leva a afirmar que muito daquilo que temos
chamado de “consagração” na vida cristã possivelmente não passe de um atestado
de nossa própria conflitividade não confessada e não assumida.
O que complica bastante a
situação daquele que assim se comporta é o fato de que quando alguém vive com
tal capacidade de se disfarçar, isso pode significar que ela está desenvolvendo
uma profunda maldade em sua própria alma: a maldade de ser tão mal, que tenta
enganar a todos sob a máscara da bondade. Vale lembrar que para Jesus esse era
o mal maior na vida, o mal dos fariseus, o mal dos religiosos, o mal dos falsos
profetas, daqueles que se mostram ovelhas mas que de fato são lobos.
Nós que somos pessoas da
igreja precisamos urgentemente aprender que a maior mentira que se comete na
vida não é aquela que se diz, mas aquela com a qual se vive. Precisamos
recuperar o senso de “intimidade” e de “interioridade” das verdades do
Evangelho. Temos que pedir a Deus que nos liberte das falsas e malignas noções
de espiritualidade. É urgente que reassumamos nossa herança Reformada, a qual
afirma nossa impossibilidade inerente para a bondade absoluta, e nos remete
humildes e dependentes para a graça de Deus. Caso contrário, corremos o risco
de nos tornarmos pessoas muito más. Aliás, a História está repleta de
testemunhos dessa nossa capacidade de nos tornarmos mais maus do que os mais
maus.
Este mal vem justamente da
nossa relação com o Sagrado. Nada é mais intenso que aquilo que é divino.
Quando alguém mantém uma sadia relação com o Sagrado, tal pessoa torna-se santa
e bonita. De outro lado, quando a relação com o Sagrado acontece desde uma
perspectiva de orgulho, autossuficiência e hipocrisia, então nada faz adoecer
mais do que essa versão religiosa da maldade. Daí que Lúcifer tornou-se mau na
exata proporção de sua anterior virtude. Assim, onde abundou a graça, superabundou
o pecado. Nós temos afirmado esse princípio apenas na dimensão paulina: “onde
abundou o pecado superabundou a graça”. Todavia, Pedro coloca a mesma verdade
desde uma outra referência histórica: “o seu estado se torna pior do que
primeiro”. Ou ainda: “melhor lhes fora jamais terem conhecido o caminho da
verdade do que, após o terem conhecido, o abandonarem”.
Certa vez C. S. Lewis
disse que o pior diabo é aquele que nós pensamos que não existe. Eu ouso,
respeitosamente, contrariar esse que foi um dos maiores pensadores cristãos de
todos os tempos, para dizer que, para mim, o pior diabo é aquele ao qual nós
nos “acostumamos”. Isso porque quando alguém não sabe ou não crê que o diabo
existe, está menos exposto à total força do diabo, pelo simples fato de
“sinceramente” não crer ou não admitir a existência dele. Há um grande poder
espiritual na verdade, mesmo que aquele que a demonstre seja um ateu. Todavia,
quando alguém sabe que o mal existe como mal real e objetivo, mas a despeito
disso vive em cínica indiferença para com esse poder, tal pessoa não se torna
apenas vulnerável ao mal, mas se torna, ela mesma, parte da própria realidade
do mal. Ninguém é mais maligno do que aquele que consegue se tornar indiferente
ao poder do mal enquanto admite a sua existência. Gente assim vive uma espécie
de “crente-descrença” no poder do mal. Ora, é simples inferir que é mais fácil
achar gente assim domingo de manhã ou de noite na igreja, do que num
laboratório de ateus confessos. É mais fácil achar esses jovens cantando com as
mãos levantadas num culto animado, do que nas praças. Aqueles que estão vivendo
sua alienação de Deus e do diabo muitas vezes fazem isso em absoluta
ignorância; mas muitos dos que lotam nossos templos cristãos e nossas reuniões
são do tipo de gente que consegue “levantar as mãos ao Senhor” e depois, mesmo
contra a Palavra do Senhor que eles conhecem, ser capaz de levar uma irmãzinha,
companheira de louvor, “para a cama”.
Eu sei que para muita
gente as afirmações que tenho feito podem soar excessivamente fortes. No
entanto, não tenho o menor temor de estar equivocado a esse respeito. Tenho a
própria história bíblica e a história da Igreja para confirmarem tais
declarações. E além disso, é só olhar em volta para se constatar que há uma
grande abundância de testemunhos contemporâneos corroborando o que estou
dizendo.
Tudo o que eu disse até
aqui tem a finalidade de estimular você, que deseja andar com Jesus, a
coerentemente tomar a cruz e segui-lo. Não é fácil assumir as dores que vêm
como resultado de uma vida sincera. É duro, o preço da verdade. Mas é a única
forma de andar com Deus. É preciso ter “coragem de ser diferente”. Não
diferente apenas mediante uma postura de “fachada”. É preciso ser diferente
desde o coração. Só assim se edifica um “compromisso capaz de fazer diferença”.
Faz dez anos que eu venho
andando com Jesus nesta consciência e fazendo todo o possível para, no dia a
dia, não me esquecer dessas verdades a respeito das quais acabei de escrever. Neste
período já me alegrei, me decepcionei, firmei meus passos, vacilei,
pequei-peco-e-pecarei, e encontrei-encontro-e-encontrarei perdão e Graça no
Amor de Deus revelado em Jesus Cristo. Mas uma coisa tem me ajudado muito,
nesses anos: a lembrança de que eu não tenho que ser, para ninguém, qualquer
coisa além daquilo que Deus sabe que eu sou. Isso me ajuda a não ter medo de
ser gente.
Todavia, essa mesma
verdade me ajuda a ser aquilo que, na graça de Deus, eu devo ser na minha
“identificação gradual na História”. E quando me sinto tentado a pensar
diferente, eu me lembro que os felizes, do ponto de vista de Jesus, são os que
têm coragem de chorar, os mansos, os que têm fome e sede de justiça – ou seja,
os que querem mais –, os misericordiosos, os que se purificam na graça de Deus,
os que vivem para construir pontes entre os separados pelo ódio, e os que
assumem a perseguição como o resultado mais natural da sua relação com Jesus,
aquele que por viver tão diferentemente dos padrões vigentes, sofreu o preço de
uma existência capaz de ser radicalmente relevante; aquele que mostrava seu
brilho pessoal a poucos (transfiguração), mas que não teve vergonha de mostrar
sua dor e verdade humanas a todos, na cruz.
Somente vivendo com essa
compreensão evitaremos a terrível realidade de nos tornarmos hoje os fariseus
que Jesus repudiou ontem. Como você viu, a Síndrome do Fariseu ainda hoje
contamina corações cheios de si mesmos. Cabe a você jamais chegar lá.
Que você escolha não ser
um produto da religiosidade farisaica. Mas que seja um filho da graça, do
perdão, do amor e da misericórdia de Jesus Cristo.
Na Graça daquEle, que
embora sabendo que sou pecador, me amou primeiro se entregando por mim na Cruz,
me fazendo por meio de Seu sangue, um Filho da Graça!
Juliano Marcel
(parafraseando com Caio
Fábio em alguns trechos)
Bragança Paulista-SP
05/05/2012
